É conhecido o combo que estabelece a linha narrativa que guia o debate político no Brasil: manchetes de capa dos grandes jornais, doses noturnas de William Bonner e uma capa da Veja no fim de semana. É esse tripé fundamental que, há anos, vem pautando o noticiário e influenciando fortemente o jogo político. Ele conta com a receptividade de uma massa consumidora de manchetes que não se aprofunda nos assuntos e ignora a complexa relação de poder existente entre mídia e política.

Os maiores veículos de imprensa do país – O Globo, Folha, Estadão e Veja – não esconderam sua opinião em favor do impeachment e rejeitaram a versão que defende a existência de um golpe em curso.

Otavinho Frias, herdeiro da Folha, chamou uma jornalista britânica de “representante da militância petista” ao ser questionado sobre a participação decisiva da imprensa no processo de impeachment de Dilma. Apesar de se dizer pessoalmente contra o impedimento da presidenta, defendeu sua renúncia em editorial.

João Roberto Marinho, herdeiro do O Globo, defendeu no The Guardian a legalidade do impeachment e ainda afirmou que a sua lojinha fez uma cobertura imparcial de todo o processo. Sim, ele teve essa audácia.

Em um editorial, o Estadão afirmou que o impeachment seria o melhor caminho para o país. Em outro, chamou de “matraca do golpe”* quem acreditava que o processo não seguia a Constituição.

Portanto, fica registrada na história a posição tomada pelas famílias que comandam a comunicação do país. As mesmas que apoiaram entusiasticamente o golpe de 64.

Ainda assim, ninguém pode acusar a imprensa brasileira de omitir informações. Ela publica tudo. Tudo mesmo, sem ironia. Mas, como se sabe, o diabo mora mesmo é nos detalhes, nas manchetes de capa, nos editoriais e na opinião dos colunistas mais prestigiados pelos patrões. Dentro desse contexto, cabe até alguns articulistas de esquerda para conferir aquele verniz pluralista. No final das contas, a decisão sobre o que vai brilhar na capa do jornal – ou se esconder num rodapé – sempre estará alinhada à opinião das famílias proprietárias. Trata-se apenas de uma questão de lógica, mas há quem prefira acreditar na pureza e neutralidade do jornalismo.

Façamos um recorte na tentativa de compreender melhor todo esse processo. No dia 3 de março deste ano, a revista Isto É teve acesso a fragmentos da delação de Delcídio Amaral, ex-líder do governo no Senado. Curiosamente, a publicação obteve apenas os trechos em que Dilma e Lula eram acusados pelo delator, rendendo manchetes que se encaixavam como uma luva na narrativa pró-impeachment estabelecida pelos donos de mídia.

Menos de duas semanas depois, em 15 de março, foi divulgada a delação completa. Eram 254 páginas de pura nitroglicerina, que não pouparam ninguém. Além de Dilma e Lula, Aécio, Cunha, Temer, Jucá e outros políticos de diferentes partidos apareciam ali como participantes de esquemas de corrupção.

Mas um trecho bombástico, que revelaria a gênese da briga de foice entre a presidenta e o homem que liderou a sua queda, foi completamente marginalizado, aparecendo apenas de forma tímida no noticiário. Não ganhou manchete de capa, não teve destaque no “Jornal Nacional”, nem fez balançar a cabeleira esvoaçante de Arnaldo Jabor. Uma verdadeira pedalada jornalística, calcada na Lei de Ricúpero: “o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”.

Vejamos:


Vocês vejam só que coisa interessante. Segundo Delcídio, cuja delação tem sido tratada como verdade absoluta, Dilma teria estancado a corrupção na estatal ao demitir os propineiros ligados a Cunha, o que teria enfurecido o nobre proprietário da Jesus.com. Além disso, ela teria usado critérios técnicos na escolha da formação da nova diretoria de Furnas.

Se esse trecho da delação, que revela o primeiro ponto de conflito entre os presidentes de dois poderes do país, não é relevante o suficiente para ser destacado nas manchetes de capa e dissecado pelos colunistas, o que mais poderia ser? Michel Temer levando Michelzinho pra escola? A participação do pimpolho na escolha do logo do governo do papai?

Para completar o cenário, na última semana, Lauro Jardim noticiou solitariamente que, Luiz Henrique Hamann, um dos homens que Dilma havia afastado de Furnas por suspeitas de corrupção, foi nomeado diretor de Distribuição da Eletrobrás. Vejam só! O homem de Cunha retornou em grande estilo para o governo! Dessa vez, por indicação do Romero Jucá, autor da célebre frase sobre a Lava Jato: “Tem que resolver essa porra. Tem que mudar o governo para estancar essa sangria”.

Além de Hamman, outros três nomes de Cunha ganharam posições chave: André Moura (PSC), acusado de corrupção e tentativa de homicídio, tornou-se líder do governo na Câmara. Alexandre de Moraes, ex-advogado de Cunha, virou ministro da Justiça. Carlos Henrique Sobral, que era assessor especial de Cunha na presidência da Câmara até maio, virou chefe de gabinete do novo ministro da Secretaria de Governo. O número de apóstolos que Jesus.com emplacou no governo Temer impressiona, porém é autoexplicativo.

Claro que a história da derrubada da presidenta não se resume à briga Cunha x Dilma, mas, sem dúvidas, é relevante e contribui para a compreensão do processo. Tirar o peso devido a essa parte da delação ajuda a acobertar os verdadeiros interesses dos capitães do impeachment.

Olha, meus amigos, a boataria diz que Michel Temer tem pacto com Satanás, mas cada vez mais me convenço de que ele colocou Jesus.com no comando. E o melhor: conta com uma assessoria de imprensa divina.

*Se fizermos esforço para acreditar nos números da última pesquisa Datafolha, veremos que 37% dos brasileiros acreditam que o impeachment não seguiu as regras e a Constituição. Ou seja, para o Estadão, quase 40% da população é “matraca do golpe”.